Permita-me, o nobre leitor, subverter a importância das manchetes do cotidiano e abrir mão de falar, nesta semana, sobre corrupção, desmandos, eleições, políticos. Gostaria de filosofar, jogar conversa fora, claro que furtando os ensinamentos de verdadeiros filósofos, sobre a generosidade e o valor da amizade.
O exemplo que ilustra esta crônica foi a herança, uma verdadeira fortuna de 40 milhões de dólares, deixada por um milionário americano, Odd Odsen Junior, mais conhecido como Budd a um grupo de 18 amigos brasileiros. O dom maior aqui é a generosidade, que, diferente da justiça, distribui aquilo que genuinamente lhe pertence a outros. Claro, haverão de comentar meus caríssimos leitores que as duas virtudes quase sempre caminham juntas e, que a generosidade também é um complemento da justiça. André Conte Sponville em seu magnífico Pequeno Tratado das Grandes Virtudes assim as define: “a generosidade é mais subjetiva, mais singular, mais afetiva, mais espontânea, ao passo que a justiça, mesmo quando aplicada, guarda em si algo mais objetivo, mais universal, mais intelectual ou mais refletido. A generosidade parece dever mais ao coração ou ao temperamento; a justiça, ao espírito ou à razão”.
Peço um parágrafo para, também, ilustrar o quão difícil é ser generoso. Durante três semanas a Rede Globo de Televisão, mais uma vez, promoveu o Projeto Criança Esperança, que através das doações de empresas, e, principalmente, de telespectadores, encaminha donativos ao UNICEF para assistência a projetos que envolvem crianças e adolescentes. Pois bem… Ao longo destas três semanas, e com a participação de todo o elenco da emissora e de vários outros artistas, foram arrecadados cerca de 20 milhões de reais. Muito, dirão alguns. Mas, o que se arrecadou foi uma verdadeira ninharia lhes afirmo. Menos de 500.000 pessoas fizeram a doação. Para comparar, cerca de 20 milhões de pessoas fazem a mesma ligação para participar de um programa imbecil como o BBB. Haveríamos de perguntar, quanto de nossa renda estamos dispostos a transferir aos mais necessitados?
Voltemos a Budd e a sua generosidade. O que moveu a generosidade de Budd parece ser a gratidão e o amor que o mesmo dedicava aos catarinenses. Estes eram sua verdadeira família, pois eram amigos sem cobrar pela amizade. Budd, através do convívio com os jovens estudantes brasileiros, aprendeu o valor da verdadeira amizade, sem compromissos, sem barganhas. A partir daí doar parte de sua fortuna era o menor de todos os valores. O que vale 40 milhões de dólares para quem teve a boa fortuna de viver trinta anos com aqueles que lhe ensinaram o valor de uma nobre amizade?
Finalizo com um excerto do Tratado das Paixões de Descartes, também retirado da obra de Sponville: “Creio, assim, que a verdadeira generosidade, que faz um homem se estimar ao mais alto grau que ele pode legitimamente estimar-se, consiste, apenas, parte em ele saber que não há nada que lhe pertença verdadeiramente além dessa livre disposição de suas vontades, nem por que ele deva ser elogiado ou censurado, a não ser por usá-la bem ou mal; parte em ele sentir em si uma firme e constante resolução de bem utilizá-la, isto é, nunca carecer de vontade para empreender e executar todas as coisas que julgar serem as melhores. O que é seguir perfeitamente a virtude”.