Gosto muito de música clássica. Não sei ao certo de onde veio este gosto musical, mas quando fiz faculdade em Campinas/SP, desenvolvi o hábito de estudar ouvindo este estilo de música. Aprendi a ouvir Haendel, Liszt, Vivaldi, Chopin, Beethoven e meu preferido, Juan Sebastian Bach. Tenho a impressão de que a influência do protestantismo britânico na minha juventude contribuiu para esse meu gosto musical.
Recentemente senti vontade de ouvir Bolero de Ravel. A cadência musical desta sinfonia chama minha atenção. Ela é bem repetitiva e se não prestarmos atenção, pode parecer que estamos ouvindo a mesma coisa, do início ao fim.
No entanto, à medida que a música se desenvolve, novos instrumentos são introduzidos e a intensidade é aumentada. Sua ruptura só é visível no final, quando assume um tom diferente e termina de forma intencionalmente abrupta.
Ao ouvi-la novamente, comparei-a com o desenrolar da nossa própria história, cujos elementos novos são introduzidos à medida em que a sinfonia da vida se desenvolve. Sons e variações são incorporados lenta e sutilmente na trajetória sem quebrar o sequenciamento, mas dando sempre a formatação daquilo que somos. São os fatos e incidentes, eventos e pessoas que, aos poucos, tornam-se parte de nossa “musicalidade” muitas vezes repetitiva e monótona, como vemos no Bolero de Ravel. Nada muito diferente, mas que, indelevelmente, torna-se parte daquilo que somos, forjando nossa existência e tomando corpo em nossa vida marcada pela rotina.
No bolero, Maurice Ravel introduz lentamente os demais instrumentos e assim a música vai se tornando mais bela, outras vezes mais estridente e barulhenta. No entanto, tudo vai sendo absorvido pelo compasso central que dá a harmonia necessária para que os tons entrelaçados encaixem-se e se fundam na estrutura maior.
Nada na canção é irrelevante. Os ouvidos menos atentos podem até não perceber os instrumentos adicionados, mas a música vai sendo forjada pela junção dos elementos até chegar ao seu ápice, no mesmo ritmo e compasso.
No final, um som diferente, um movimento mais forte. O bolero está chegando ao fim. Outros tons são introduzidos, quebrando a sequência monótona. Os sons agora tornam-se mais agudos e estridentes. Uma nova realidade se aproxima. É hora de atenção! Desconstrução. Desfecho. A retumbância e sonoridade apontam em outra direção. Há uma quebra no ritmo. Mudanças constroem novas perspectivas.
Talvez o desfecho desse bolero possa ser sintetizado na afirmação do escritor francês Victor Hugo (1802-1885) ao se aproximar da morte: “O inverno está na minha cabeça, mas o verão eterno está no meu coração. Quando eu descer ao túmulo, não poderei dizer: terminei minha vida. Meu trabalho começará na manhã seguinte. O túmulo não é uma viela escura. É uma avenida movimentada que termina com o lusco fusco da aurora”. Assim me parece o Bolero de Ravel.




