Desde quinta-feira (23/01), encontra-se em vigor a Lei nº 13.964/2019, também chamada de “Lei Anticrime”, sancionada no dia 24 de dezembro último pelo Presidente Jair Bolsonaro. Basicamente, a Lei Anticrime busca fortalecer o arcabouço jurídico para combater a corrupção, o crime organizado e os crimes violentos. Entretanto, em que pese o apelo do pacote anticrime, boa parte dele desenhado pelo Ministro da Justiça, Sérgio Moro, ter tido boa acolhida na classe advocatícia, entre os membros da magistratura e do Ministério Público, bem como, por parte de outros segmentos da sociedade, as mudanças operadas na legislação não são um consenso e há certo receio em relação a eficácia de alguns pontos.
Especialista na área criminal, o advogado e escritor Maeterlin Camarço, acompanhou, desde o início, a proposta e a, agora, Lei Anticrime. Com exclusividade ao Jornal CONTEXTO, ele apresentou uma parte do estudo que fez em relação à Lei 13.964/2019 que, segundo observa, trouxe alterações significativas no Código Penal, no Código de Processo Penal e no Decreto lei nº 1.002/1969 (Código de Processo Penal Militar), bem como em outras 12 leis infraconstitucionais.
Maeterlin Camarço aponta, dentre as mudanças mais impactantes na legislação: a criação do Juiz de Garantias; o acordo de não persecução penal; a criação da Cadeia de Custódia; as audiências de custódia; a prisão preventiva; a execução provisória da pena em condenação no Tribunal do Júri, o aumento do limite máximo no cumprimento de pena. Entretanto, há, também, outros pontos não menos relevantes, que tratam de temas como: medidas cautelares; prisão preventiva; legítima defesa; competência para a execução da pena de multa; livramento condicional; perdas do produto de crime; causas impeditivas da prescrição; iniciativa da ação penal no crime de estelionato; aumento da pena do crime de concussão; modificações em artigos da Lei de Execução Penal e na Lei de Crimes Hediondos.
Numa avaliação geral, o advogado observa que a Lei Anticrime, embora insira no ordenamento jurídico brasileiro inovações modernas na efetivação do processo penal, “é inegável que a mesma possui claro e incontestável espírito punitivista”, ressalta, acrescentando que apesar da legitimidade dos objetivos da referida lei, não há quaisquer referências dogmáticas ou a pesquisas de política criminal que, de alguma forma, demonstrem que os dispositivos legais vão surtir os efeitos anunciados.
Para Maeterlin Camarço, embora seja atrativa a ideia de que o endurecimento penal e das formas de cumprimento de pena tenham, como consequência, a diminuição da criminalidade, “até hoje não existe cientificidade em tal afirmação, uma vez que jamais foi comprovada a relação de causa e efeito entre uma e outra”, diz, completando que são diversas as correntes teóricas, muitas, com o entendimento de que essa relação é equivocada.
“É oportuno lembra a sempre iluminada lição de Mitter Mayer, de que as leis valem tanto quanto valerem os homens chamados a aplicá-las”, pondera o especialista.
Juiz de Garantias
Sobre a criação da figura do Juiz de Garantias, a alteração que tem provocado maior repercussão, Maeterlin Camarço, observa, inicialmente, que a eficácia do dispositivo encontra-se suspensa por 180 dias, conforme determinação do Presidente do Supremo Tribunal Federal (STF), Ministro Dias Toffoli, em razão de duas Ações Diretas de Inconstitucionalidade (Adins) representadas na Corte pela Associação dos Magistrados Brasileiros e Associação dos Juízes Federais do Brasil. Trata-se, conforme analisa, de uma alteração importante, já que o Juiz de Garantias terá ampla competência como, por exemplo, decidir sobre a prisão em flagrante e eventual cautelar, inclusive, com a realização da audiência de custódia; decidir sobre medidas de investigação (requerimentos de busca e apreensão, interceptação telefônica, quebras de sigilo, dentre outras) e, ainda, decidir sobre o recebimento da denúncia; homologação de colaboração premiada ou acordo de não persecução penal.
Acordo de Persecução
O Acordo de não Persecução Penal, na visão de Maeterlin Camarço, é outro ponto que merece atenção detalhada. A novidade na legislação, destaca, foi “importada” da legislação americana. Mas, ainda por lá, não produziu resultados como se esperava.
O criminalista destaca que este ponto da lei objetiva desafogar a justiça criminal, a partir da possibilidade de acordo de não persecução de crimes cometidos sem violência ou grave ameaça, cuja pena mínima seja inferior a 04 anos, sendo que o favorecido deverá confessar “formal e circunstancialmente a prática da infração”. A iniciativa deve partir do Ministério Público, com participação de defesa técnica e homologação judicial. Para o jurista, apesar da boa intenção, essa alteração na legislação pode afetar as garantias da ampla defesa e do contraditório.
Cadeia de Custódia
Sobre a criação da Cadeia de Custódia, Maeterlin Camarço a considera um avanço, na medida em que a nova lei descreve, com minúcias, todo procedimento de reconhecimento de elementos para a produção de prova pericial, deixando claro que todos os vestígios coletados, seja no âmbito do inquérito ou do processo penal, deverão ser, obrigatoriamente, remetidos à central de custódia existente em cada instituto de criminalística e com gestão vinculada diretamente ao órgão de perícia oficial de natureza criminal.
Audiência de Custódia
No tocante às audiências de custódia, o especialista observou que, embora já viesse ocorrendo a sua aplicação, a medida imposta pela Convenção Americana de Direitos Humanos e consolidada pela Atuação do STF e do Conselho Nacional de Justiça está, agora, definitivamente, incorporada à legislação, inclusive, “havendo a devida valorização da oralidade e do contraditório no controle da prisão realizada, com a finalidade de evitar atos de tortura e verificar a legitimidade de segregação do imputado”.
Execução Provisória
Maeterlin Camarço avalia outra mudança importante na Lei nº 13.964/2019, no que concerne à execução provisória da pena em condenação no Tribunal do Júri. Segundo ele, o novo ordenamento jurídico possibilita a execução provisória da pena igual ou superior a 15 anos de reclusão, no caso de condenação proferida pelo Tribunal do Júri, com expedição do mandado de prisão, independentemente de interposição de recurso de apelação.
“Entendemos que essa inovação vai de encontro ao princípio de presunção de inocência, principalmente, quando em recente julgamento, o STF firmou o posicionamento contrário à possibilidade de execução antecipada da pena, patenteando que a Constituição é clara quanto ao princípio da presunção de inocência”, ressalta Maeterlin Camarço, observando, entretanto, que essa mudança será fruto de acalorados debates.
Analisando, ainda, a Lei Anticrime de uma forma mais global, o advogado alerta que “é de fácil constatação que se criaram dispositivos para desafogar a justiça criminal, mas, por outro lado, aumentou-se a possibilidade de crescimento da população carcerária”. O que, na sua avaliação, é uma temeridade devido à situação de estrangulamento já constatado na atualidade.
Para reforçar a preocupação, Maeterlin Camarço cita dados do Banco de Monitoramento de prisões do CNJ, apontando que em agosto de 2019, haviam 812.564 presos no Brasil e encontravam-se pendentes 366 mil mandados de prisão para serem cumpridos, sendo que a capacidade carcerária girava em torno de 400 mil vagas.
Leis modificadas pela Lei Anticrimes
– Código Penal;
– Código de Processo Penal;
– Decreto-lei 1002/1969 (Código de Processo Penal Militar);
– Lei de Execução Penal;
– Lei dos Crimes Hediondos (8.072/90);
– Lei das Interceptações Telefônicas (9.296/96);
– Lei da Lavagem de Dinheiro (9.613/98);
– Estatuto do Desarmamento (10.826/2003);
– Lei dos Tóxicos (11.343/2006);
– Lei dos Estabelecimentos Prisionais de Segurança Máxima (11.671/2008);
– Lei da Identificação Criminal do Civilmente Identificado (12.037/2008);
– Lei das Organizações Criminosas (12.694/2012);
– Lei das Organizações Criminosas- Investigação Criminal (12.850/2013);
– Lei 13.608/2018 – que dispõe sobre o serviço de recebimento de denúncias e sobre recompensa por informações que auxiliem as investigações criminais;
– Lei 8.038/2019 – que institui normas procedimentais para os processos que especifica, perante o Superior Tribunal de Justiça e o Supremo Tribunal Federal.
– Lei 8.429/92 – Lei de Improbidade Administrativa