Um acontecimento típico em desfavor da chamada “luta antimanicomial” ocorreu no domingo passado, 21, no Hospital Municipal de Anápolis. Por volta das 17 horas, um paciente internado apresentou uma crise de agressividade. Na ausência de enfermeiros e profissionais especializados, foram chamados ao quarto, para contê-lo, dois policiais, que entraram armados de revólver no coldre, e mais um funcionário com cassetete na mão. Tratava-se do paciente M. A. F., de 42 anos, que dera entrada no dia anterior trazido pelo SAMU (Serviço de Atendimento Móvel de Urgência).
Além de funcionários, presenciaram a cena vários usuários que se encontravam no hospital em busca de atendimento. Uma das testemunhas disse que o funcionário de cassetete teria dito ao sair do quarto, de regresso à portaria: “consegui acalmar o homem”.
Segundo informou a enfermeira-chefe daquele nosocômio, Valéria Cristina, o paciente fora recolhido na rua e “chegou trazido pelo SAMU, com um quadro convulsivo em razão do consumo de álcool, e em situação de grave comprometimento clínico decorrente do uso prolongado da substância”. Ainda, segundo ela, o SAMU encaminha todos os casos de natureza psiquiátrica ao Hospital Municipal, onde são feitos avaliação e encaminhamento do paciente a um hospital especializado. O Municipal não dispõe de médico psiquiatra, nem de instalações próprias para estes casos. A enfermeira explicou também que o paciente aguardava por vaga no HEP (Hospital Espírita de Psiquiatria). Entretanto, só na segunda-feira, 22, às 16 horas, M. A. F. foi conduzido ao hospital psiquiátrico para ser consultado por especialista e receber medicação adequada.
Consultada a respeito do caso, a direção do hospital psiquiátrico informou que existe um número limitado pelo SUS (Sistema Único de Saúde, do Ministério da Saúde) de leitos disponíveis para internação de urgência. Em decorrência disso, é freqüente a falta de vagas. Entretanto, disse Cauby Moreira Pinheiro, diretor executivo do Sanatório Espírita de Anápolis, entidade mantenedora daquele hospital, “todo e qualquer paciente que chegar será avaliado por um médico psiquiatra e, ainda que não houver vaga disponível para internação imediata, se for o caso o paciente receberá medicação até que surja vaga e ele possa dar entrada”.
Cauby disse também que o HEP não dispõe de um sistema de pronto socorro psiquiátrico mantido pelo SUS, como seria correto, segundo ele, para internação ininterrupta de pacientes em quadro de crise aguda psicótica ou drogativa. “O pronto socorro que temos é um arranjo interno de nossa instituição para atender a um mínimo de pacientes que chegam aqui precisando de tratamento urgente, os quais nem sempre podemos receber porque os 14 leitos disponibilizados neste setor do hospital estão sempre totalmente ocupados”, informa o diretor. O HEP atende hoje, em regime de internação, um total de 320 pacientes simultaneamente, mas já manteve, há 25 anos, cerca de 500, incluindo-se psicóticos e dependentes químicos.
O diretor-médico do HEP, Maurício Candiotto Guimarães, analisa que houve uma diminuição drástica na quantidade de leitos hospitalares psiquiátricos, “uma vez que só a população, de Anápolis era de 220 mil habitantes, naquela época; hoje, são quase 350 mil habitantes, fora os moradores de outros 80 municípios que dependem de Anápolis para tratamento em saúde mental”, explica Candiotto.
Redução de leitos é uma política questionável
A redução nos leitos hospitalares em psiquiatria por parte do SUS faz parte de uma política de “desospitalização” no setor. Mas, diferente do que ocorre nas outras especialidades médicas, em que há uma orientação para se limitar a permanência do paciente no hospital exclusivamente ao tempo necessário; no caso da psiquiatria, há um movimento declarado em favor da extinção até mesmo dos hospitais psiquiátricos, chegando-se a questionar se o “distúrbio mental” seria “enfermidade”. Entretanto, propõe que o portador de transtorno mental, em situação mais grave, seja recolhido em hospitais gerais (não psiquiátricos, como é o caso do Hospital Municipal).
Esse movimento não surgiu no Brasil, mas aqui ganhou importantes adeptos, tanto na área política quanto na própria área da saúde, sob a bandeira de que a psiquiatria afronta os direitos humanos. Alguns dos militantes dessa bandeira foram ou estiveram ligados a vítimas do sistema de repressão estabelecido com o Golpe de 1964, que utilizou o sistema hospitalar psiquiátrico para punição e retenção de antagonistas insurgentes ou “subversivos”. A estes se juntaram vários outros segmentos, inclusive de defesa comportamental, e o próprio Governo Federal, que tem no sistema psiquiátrico importante consumidor de recursos financeiros.
“Mas tal fato não justifica a abolição pura e simples dos hospitais psiquiátricos”, pondera Maurício Guimarães, “porque se assim fosse teríamos de acabar com todas as polícias e até com os órgãos das forças armadas, que foram desviados de suas funções para reprimir pessoas contrárias aos detentores do poder”. Por outro lado, afirma o psiquiatra, “as instituições sérias sempre foram a favor da evolução e atualização do modelo psiquiátrico; uma coisa é modernizar, aprimorar, outra é eliminar, como propõem alguns, até afrontando o interesse da população que necessita deste serviço”.
Afirma Candiotto Guimarães: “Há casos que não necessitam de um minuto sequer de internação, nem são psiquiátricos, mas há outros que são graves e crônicos; muitos são congênitos (de nascença). Para vários, nem cura parcial existe. Outro fato: grande parte das famílias não tem como cuidar de um paciente psiquiátrico em crise, e toda a família fica meio doente junto com ele”.
Os segmentos que propugnam pela “extinção dos hospitais psiquiátricos”, entretanto, não respondem a indagações sérias que estão sendo lançadas no mundo todo, como o aumento drástico da morte de doentes mentais, tanto por suicídio quanto por outras causas, numa estatística que corresponde de forma direta à desospitalização compulsória. A Federação Brasileira de Hospitais, através do Departamento de Psiquiatria tem acompanhado o caso.
Na Itália, onde o sistema psiquiátrico foi desmontado a partir da década de 1970, dois fatos recentes chamaram a atenção da comunidade internacional: a agressão física sofrida pelo primeiro ministro Silvio Berlusconi, causada por um portador de transtorno mental, e outro fato parecido, que ocorreu onze dias depois, com o Papa Bento XVI, que não saiu ferido como Berlusconi, mas um arcebispo francês quebrou a perna ao tentar defendê-lo de uma mulher portadora de esquizofrenia.
Foi na Itália que o psiquiatra Franco Basaglia, falecido em Veneza em 1980, aos 56 anos, comandou uma reforma no sistema de saúde mental. A lei nº 180, ano de 1978 (Lei Basaglia), ainda vigente por lá, suprimiu os hospitais psiquiátricos italianos. Em 1979, Basaglia visitou Hospital Colônia de Barbacena, Minas Gerais, (o mais antigo do Brasil), e o comparou a “campos de concentração”.
Em Anápolis, a Lei Orgânica do Município aborda a “saúde mental” de forma inconstitucional sob vários aspectos. Também tramita na Câmara Municipal um projeto de lei sobre o tema, que será debatido em audiência pública no dia 4 de março, a partir das 10 horas. A proposta substitui os termos “transtorno mental” ou “doença mental” por “sofrimento mental”. A assessoria jurídica de três instituições de saúde mental em Goiás, e uma do Distrito Federal, informaram que a competência legislativa sobre o assunto é da União.
“Nessas discussões o tema não é tratado de forma científica, nem sequer do ponto de vista sociológico, mas de maneira ideológica e sem fundamentação. A psiquiatria é uma ciência e resultado de pesquisa em todos os países do mundo, há um século”, pondera Adilson Pinto, presidente do Sanatório Espírita de Anápolis, “entretanto, só agora, com o um projeto submetido a audiência pública é que a principal instituição psiquiátrica do Centro-Oeste (o HEP) foi chamada a debater a questão”.