Quem somos nós, afinal? A mesma criança que um dia correu livre pelas ruas? O jovem que sonhou alto e acreditou ser dono do mundo? O adulto que caiu, recomeçou e, entre erros e acertos, foi esculpido pelo tempo?

O corpo nos engana: as células se renovam a cada poucos anos, a pele se troca como um pergaminho reescrito, o sangue circula novo. Se a matéria não é mais a mesma, por que continuamos a dizer: “eu sou eu”?
É aqui que me recordo do Navio de Teseu. Peça por peça, aquele barco mítico foi sendo restaurado até que nada restava de sua madeira original. E, ainda assim, seguia sendo chamado de “o navio de Teseu”. Mas se alguém, guardando as velhas tábuas, construísse outro barco com elas, qual dos dois seria o verdadeiro?
Esse paradoxo atravessa a filosofia, mas também atravessa a vida. Porque nós, seres humanos, somos navios em constante reparo. Trocam-se as peças: mudam os hábitos, transformam-se os sonhos, apagam-se algumas memórias, surgem novas feridas e novos brilhos. E, no entanto, permanecemos nós.
Jesus Cristo compreendeu esse mistério melhor que qualquer filósofo. Ao falar com Nicodemos, disse:
“Em verdade te digo: quem não nascer de novo, não pode ver o Reino de Deus” (João 3:3).
Nascer de novo não é voltar ao ventre, mas aceitar que somos capazes de nos reconstruir, de sermos refeitos no espírito, ainda que a carne permaneça em constante transformação.
O paradoxo do navio encontra eco nessa verdade: não é a madeira que faz o barco, mas o sopro que o move. Não é a matéria que define o homem, mas a chama interior que o anima.
Jesus também disse:
“Eis que faço novas todas as coisas” (Apocalipse 21:5).
É Ele quem revela que mudança não significa perder-se, mas tornar-se. Cada transformação que vivemos é convite para renascer em algo maior, mais inteiro, mais próximo do amor que nos sustenta.
Podemos, então, olhar para trás e ver as versões que já fomos — o menino, o jovem, o adulto, o ancião. São navios diferentes ou o mesmo navio em viagem? Talvez ambos. Somos a memória guardada e a travessia em curso.
A identidade humana não está nas tábuas que caem ou nas que se erguem em seu lugar. Está naquilo que permanece invisível: no sopro do espírito, na continuidade do propósito, na fidelidade ao chamado interior.
Assim como Cristo não negou a transformação — curando, perdoando, levantando caídos — também nós somos convidados a acolher nossas próprias mudanças. Ele mesmo disse:
“Ninguém deita vinho novo em odres velhos” (Marcos 2:22).
A mudança é inevitável; resistir a ela é impedir que o vinho novo da vida seja derramado em nós.
Então, talvez não devamos perguntar “quem sou eu?” como se houvesse apenas uma resposta fixa, imóvel no tempo. A questão verdadeira é:
“Quem estou me tornando?”
Entre a permanência e a transformação, navegamos como o navio de Teseu, refeitos a cada dia, mas conduzidos pela mesma essência. E, se a cada ciclo, abrirmos espaço para nascer de novo no amor de Deus, talvez possamos dizer, com toda a certeza:
Sim, sou o mesmo — mas não o mesmo de ontem; sou aquele que se deixa transformar pelo sopro eterno que nunca muda.
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