A região, às vezes, chega a ser denominada, pejorativamente, de “nem-nem”, ou seja, não seria nem de Silvânia, nem de Anápolis, uma situação que perdura por, pelo menos, quatro décadas.
O Loteamento Setor Daiana, uma faixa de terras que faz parte do município de Silvânia, mas cujos moradores têm vida ativa praticamente ligada a Anápolis, região contígua ao Distrito Agro Industrial (DAIA) tem sido, ao longo de décadas, objeto de discussões político/administrativas, devido, principalmente, à definição de que município teria responsabilidades socioeconômicas sobre ele, principalmente, de que prefeitura (Anápolis, ou Silvânia) devem ser cobradas tais assistências. O assunto esbarra na competência legal, pois, de um lado, entende-se que por ser área de Silvânia, seria aquele município o responsável por “cuidar” do Setor Daiana. De outro lado, argumenta-se que os moradores do referido loteamento, em grande parte, trabalham em Anápolis, têm seus filhos matriculados na rede municipal anapolina, desfrutam dos serviços básicos (saúde, segurança, etc.) de Anápolis, embora seus domicílios sejam, oficialmente, registrados no município limítrofe. A discussão sobre este tema nunca fora novidade nos últimos anos. Mas, recentemente, surgiu um fato novo. Dois anapolinos se propuseram a apresentar uma dissertação acadêmica, em um mestrado na Universidade Estadual de Goiás (UEG) justamente sobre o assunto. Rubens Arcelino Feliciano Júnior, mestre em Ciências Socioeconômicas pela Universidade Estadual de Goiás, especialista em LGPD-ESA; Bacharel em Direito pela Faculdade Evangélica Raízes e licenciado em Letras, pela Universidade Federal de Goiás e Fernando Lobo Lemes, Pós-Doutor em História pela Université de la Sorbonne Nouvelle – Paris 3 (École Doctorale 122), associada ao Centre de Recherche et de Documentation sur les Amériques; Professor no Programa de Pós-Graduação em Territórios e Expressões Culturais no Cerrado da Universidade Estadual de Goiás.

A dissertação
No artigo, analisa-se “a exclusão territorial e a omissão estatal na consolidação urbana do Setor Daiana, situado em Silvânia-GO, fronteiriço à cidade de Anápolis, entre 1980 e 2024”. A hipótese central sustenta que a ausência de políticas públicas e infraestrutura básica naquele território, evidencia um estado de exceção permanente, conforme os marcos teóricos de Giorgio Agamben, em que o poder público suspende, de fato, a aplicação da ordem constitucional para grupos específicos.
A pesquisa adota metodologia qualitativa, com levantamento bibliográfico, documental e empírico e articula teorias do território, da conurbação (termo para a conjunção de duas áreas urbanas de municípios diferentes) e do Direito Administrativo. O estudo demonstra, ainda, que, embora o setor tenha origem regular, seu abandono institucional consolidou uma cidadania fragmentada. Discute-se o marco legal da regularização fundiária, com base na Lei nº 13.465/2017, propondo-se alternativas viáveis de superação da inércia administrativa. A análise evidencia que a omissão do Estado em áreas de fronteira urbana aprofunda desigualdades e exige respostas interinstitucionais para se garantir o direito à cidadania e à dignidade.
Os autores da dissertação alegam que “o Setor Daiana permanece, há mais de quatro décadas, sem infraestrutura urbana, serviços públicos essenciais e reconhecimento territorial efetivo. Rubens Júnior e Fernando Lemes alegam que “o objetivo geral do trabalho é analisar os fundamentos jurídicos e territoriais que explicam a exclusão do Setor Daiana, além de propor alternativas legais para sua regularização. Como objetivos específicos, pretende-se: reconstruir o processo histórico e político de formação do setor, identificarem-se as práticas omissivas do poder público e discutirem-se os instrumentos jurídicos viáveis para a sua efetiva consolidação.

Histórico
O Setor Daiana foi lançado, oficialmente, no final da década de 70 por iniciativa privada, com aprovação registral e projetos urbanísticos elaborados, com vistas à moradia para trabalhadores do Distrito Agro Industrial de Anápolis (DAIA). Contudo, após sua ocupação inicial, o loteamento foi ignorado pelo município de Silvânia que não ofereceu, dentre outros benefícios urbanos, rede de esgoto, água tratada, pavimentação, coleta de lixo, transporte escolar ou unidades de saúde por décadas. A situação é agravada pela conurbação com Anápolis: os moradores dependem funcionalmente dessa cidade, o que reforça a desconexão institucional com o município de origem. A inexistência de ações coordenadas entre os entes federativos evidencia um “vazio de governança” e configura, não apenas, uma falha administrativa, mas, a supressão do próprio princípio republicano, positivado na Constituição Federal de 1988, da Dignidade da Pessoa Humana. Nesse território, a ordem jurídica formal está em vigor, mas, sua eficácia é anulada por práticas administrativas omissivas. O fornecimento ocasional de serviços básicos, como iluminação parcial ou atendimento médico esporádico, apenas, reforça a lógica da exceção. A ausência de cobrança de tributos (como IPTU/ITU), a não inclusão em programas habitacionais e o uso indevido de CEPs de Anápolis por moradores para receberem correspondências, confirmam esse processo de exclusão institucionalizada.
Nas considerações finais, os autores alegam que “o Setor Daiana revela como o território pode ser juridicamente regulado, mas, socialmente abandonado. A combinação entre inação do poder público, omissão institucional e ausência de mecanismos efetivos de governança, torna o setor exemplo claro de cidadania negada. O estado de exceção contemporâneo não é mais apenas o da suspensão de garantias por decreto, mas aquele que se perpetua na omissão cotidiana, seletiva e funcional. A superação desse quadro exige o fortalecimento de políticas públicas integradas, mecanismos de pressão comunitária e atuação do sistema de justiça. A regularização fundiária é etapa necessária, mas, não suficiente. “Ela deve vir acompanhada da efetiva prestação de serviços, garantia de infraestrutura e reconhecimento pleno da dignidade dos moradores como sujeitos de direito”, diz o texto.
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