Um caso sem precedentes na história da investigação policial em Anápolis. Na última terça-feira, 11, uma operação deflagrada pelo 6º Distrito da Polícia Civil trouxe à tona um caso envolvendo cárcere privado, tortura e uma série de barbáries praticadas na clínica de recuperação de drogativos Anjos da Luz, que possuía duas unidades em funcionamento – uma no setor Arco Verde e a outra na BR-414, próximo à Base Aérea. Os relatos remetem a cenas de filmes de terror e, até, comparações com os horrores dos campos de concentração da Alemanha Nazista, na segunda guerra mundial.
A denúncia partiu de dois ex-internos que conseguiram fugir da clínica. A partir daí, o delegado titular do 6º DP, Manoel Vanderic Filho, juntamente com a sua equipe, começou a monitorar as atividades da instituição. Um agente foi infiltrado e conseguiu a gravação de um vídeo em que um dos coordenadores declara como funcionava, inclusive, a forma de pagamento, que chegava a R$ 8 mil para um período de internação de seis meses, pagos mensalmente.
Durante a operação, foram autuadas, em flagrante, seis pessoas: um dos donos (que é médico), um diretor e quatro coordenadores. O outro sócio e mais um coordenador conseguiram fugir ao flagrante. Eles responderão as acusações de sequestro qualificado, tortura e formação de quadrilha. Além disso, segundo o delegado, poderá haver outros desdobramentos, tais como, ações na área cível, processos de indenização por danos morais; ressarcimento de valores pagos e também, possivelmente, multas por funcionamento irregular. De acordo com o delegado Manoel Vanderic, a clínica não tinha alvará de funcionamento, nem autorização por parte da Vigilância Sanitária ou mesmo autorização do Ministério Público. Também não tinha prerrogativa para fazer internações compulsórias, o que depende de autorização da família, laudo médico, além de encaminhamento ao Ministério Público, para a devida autorização de um juiz. Alguns internos, nos depoimentos dados à polícia, contam que foram levados à força para a unidade.
Atrocidades cometidas
Segundo o delegado, a lista de atrocidades que ocorriam no interior da clínica, principalmente na unidade do Arco Verde, é extensa: os internos ficam acomodados em locais insalubres e poucos dormiam em camas; faziam trabalhos forçados e sofriam castigos extremos: tomavam choques; eram queimados com tocos de cigarro; sofriam constantes agressões físicas e verbais; afogamentos; algumas mulheres eram obrigadas a ficar nuas e tomar banho gelado e havia também uma espécie de cemitério, em que as pessoas eram enterradas e ficavam apenas com a cabeça de fora. Sem contar o uso de medicamentos fortes, alguns de uso controlado.
De acordo com o titular do 6º DP, no total, 70 pessoas foram resgatadas e encaminhadas de volta às suas famílias. Destas, 10 que são de outras localidades, foram encaminhadas a um abrigo da Prefeitura. O inquérito já está praticamente concluído. O sócio que está foragido prometeu se apresentar. Mas, até o fechamento da matéria, essa apresentação ainda não havia ocorrido. Manoel Vanderic informou que as pessoas autuadas e presas, negaram que havia maus tratos aos internos e que eram apenas medidas para conter os pacientes que estavam mais exaltados. E mais: falaram que estavam prestando um serviço social.
Durante a presença da reportagem na delegacia, o pai de um dos internos foi saber como faria para resgatar uma promissória. Ele narrou que vinha pagando R$ 800, de um total de R$ 8 mil, confirmando o que os próprios internos narraram nos depoimentos.
O relato de quem esteve na cena de horror
O CONTEXTO teve acesso a um dos relatos. O nome do depoente será ocultado, em razão das próprias circunstâncias do fato ocorrido. O homem, que declarou ser dependente de crack, disse que foi pego à força para ser internado na Casa de Recuperação Anjos da Luz, por quatro homens. Ele levou uma gravata, desmaiou e acordou numa cela com grade pequena, um sanitário do chão e um chuveiro de água fria.
Ainda no relato, o ex-interno narrou que era dopado com remédios como Fenergan e Neusin. Após sair da cela, foi levado ao convívio com os demais internos, que eram mantidos trancados na casa e, em sua maioria, dormiam no chão. Segundo ele, havia pessoas de várias idades, até menores. A alimentação era péssima, às vezes comiam somente arroz e outras com verduras estragadas.
O homem declarou que os internos se revezavam nas tarefas de limpeza e na cozinha e, alguns dos internos, que eram “nomeados” monitores, também, participavam de agressões a outros. E que, por motivos fúteis, os internos eram agredidos e torturados pelos monitores “que eram escolhidos pelos coordenadores Tiago Torres; ‘Samir‘; ‘Ranieri‘; Madson Rodrigues dos Santos; ‘Renatinho‘, ‘Júnior‘ e Jonatan Costa de Morais, sendo que estes coordenadores também espancavam e torturavam”, narrou, acrescentando que os donos da casa eram chamados de André, o médico Sandro Rogério da Silva, o terapeuta Almerindo Silva Neves e o psicólogo Severino.
Ainda na sua exposição, o ex-interno informou ter presenciado cenas de tortura como choque, espancamento, afogamento a seco e em água, pessoas enterradas vivas com a cabeça para fora da terra, uso de medicações por qualquer motivo, trabalho escravo, torturas psicológicas. Ele próprio – contou – foi espancado, amarrado com corda e colocado em uma cela. Segundo informou, os donos fingiam que não presenciavam as agressões e que o homem chamado Almerindo era um dos principais agressores. Na ala feminina, também havia sessões de agressão e tortura. Para todos, o contato com a família era restrito, sendo as ligações monitoradas no sistema viva-voz. Se algum interno pedisse para sair ou se falasse algo para algum parente, era submetido às torturas. Disse, ainda, que dentro da casa eram vigiados pelos coordenadores e monitores que portavam pedaços de pau e facões.
No do resgate, durante a operação policial, o ex-interno contou que o coordenador Ranieri chegou dizendo na casa que um interno, conhecido como ‘Marcos Pernaiada’, que havia fugido há cerca de um mês, estava voltando e que “estava indo para lá matar todo mundo” e ordenou que deixassem a casa, sendo levados de carro para uma chácara. E, no momento em que houve o cerco, Sandro e Jonatan ainda estavam preparando algumas pessoas para a transferência.
Ainda, no relato, o homem destacou que se sentia pior do que se estivesse em uma cadeia e que nunca eram visitados por médico, psicólogo ou enfermeiro. Os profissionais mencionados apenas negociavam as internações com as famílias ou responsáveis.