Passei, há pouco, dos quarenta. Sem as chamadas crises existenciais comuns nesta faixa, embora nem tanto puritanamente resolvido. Os chegados sabem do que falo. Os mais próximos entendem, mas não compreendem o por que. Entretanto, o que importa é a tal felicidade. Sou feliz. Muito feliz! Acredito que muito além da maioria absoluta das pessoas que conheço. Provavelmente devo estar no topo dos “plenamente felizes” em índices aferidos pelas estatísticas sobre o assunto. E como gostamos de estatísticas! Seria influência norte-americana?
Entrei na casa dos enta todo serelepe por que, verdadeiramente, amo a Deus, a minha pátria, a minha família e os meus amigos. Sou determinado por que, dentre outras coisas, nutro uma desenfreada paixão pelas atividades que exerço, procuro ser produtivo e útil à minha comunidade. Participo econômica, social e politicamente da cidade em que cresci, plantei e agora estou colhendo.
Limitações à parte, entrego-me de corpo e alma para proporcionar à minha família, uma razoável educação e o bem-estar social. Também, não obstante as minhas múltiplas imperfeições, tenho me empenhado para ser um bom marido e um bom filho. Sou amigo de meus amigos. Há quem fale que sou mais amigo do que os amigos. Sorte minha. É melhor dar do que receber.
Sou casado. Lina Di Clemente, é tudo de bom e mais um pouco. Virtuosa, e bonita, é boa filha, mãe exemplar, servidora pública estadual (concursada) e a melhor das companheiras, acreditem. Perdoem-me as amigas, mas ainda não me deparei com nenhuma mulher que se compare à Lina.
Fui premiado com cinco filhos. Entre eles, está o Étore, aniversariante desta sexta-feira, 17, nove anos. Étore é o presente que Deus projetou e nos enviou. Deus, por ser o Alfa e o Ômega, revestido de toda a sua supremacia; de todo o seu poder; de toda a sua autoridade; de toda a sua honra e glória e por meio de seus olhos, que tudo enxerga, mirou em um anjo e ordenou: “Vá habitar um lar se esforça para cumprir os meus mandamentos. Seja, a partir de agora, a razão maior da alegria dessa família”.
E surge o Étore. Concebido pela graça do amor chega numa linda embalagem, perfeita e bem cuidada. Sua genitora, ainda nas primeiras semanas de gestação, o cercou com os mais primorosos cuidados. Preocupava-se, a mãe, com o seu corpo e a sua mente visando proporcionar uma vida saudável ao ser que se formava. Assim foi gerado aquele que seria, segundo os sonhos de seus pais, tão importante para a sociedade como fora para a sua época o grande Alexandre da Macedônia, ou um tipo como Einstein, Senna, JK. Ou, quem sabe, um James Fanstone (primeiro médico residente em Anápolis).
Habituado a fortes emoções, me encolhi quando o pequeno Étore estreou no mundo. Estatelado, embasbacado, testemunhei o parto empunhando uma câmera de vídeo. Embora registrando aquele sagrado ritual, nada enxergava, nada parecia sentir. Talvez eu estivesse preocupado em encontrar a melhor imagem para mostrar ao estreante no futuro. Despertei-me quando ouvi o choro por conta daquele tapinha em seu bumbum. Seria mesmo necessário o “violento” procedimento? Diz a cultura médica que sim. “É para o bebê “statar” os pulmões quando chorar”, alegam.
Concluídos os trabalhos de filmagem, uma onda de ansiedade, medo e desconforto se apossou de mim. Seria a criança um ser saudável? Estaria em perfeitas condições físicas? Finalmente as apresentações. Pai e filho frente a frente. Percorri os olhos por todo aquele corpinho ainda roxo. Contei os seus dedos, observei os olhos, as orelhas, as suas perninhas, os braços, o pipiu… tudo! Conferi a criatura como um homem vistoria um carro em sua primeira compra e, dizem, como uma mulher admira o seu primeiro sutiã. Tudo normal. Um alívio!
Alívio temporário… Já nas primeiras semanas de vida percebemos que os movimentos voluntários próprios a uma criança não aconteciam ao Étore. Depois de incontáveis e angustiantes incursões ao pediatra, o encaminhamento a uma especialista em neurologia foi sugerido. O diagnóstico: lesão cerebral. O comando das células que determina as ações da criança foi corrompido. “E, o que fazer”? Atônita, perguntou a mãe… “Por ora nada. O futuro só Deus sabe. Mas é certo que seu filho terá dificuldades motoras. E gravíssimas”, respondeu a fria, mas experiente médica.
A notícia trincou o meu mundo. E o mundo de minha mulher pareceu nunca ter existido. Por um dia ficamos mudos. Por semanas ficamos anestesiados. Por meses perdemos os sentidos. Estivemos, praticamente, mortos. Perambulamos pela casa às madrugadas, silenciosamente, sem ainda entender o acorrido. O silêncio só era quebrado pelos incontidos soluços. Fugimos de tudo. Fugimos dos amigos, da família, de nós. Por fim, fugimos de Deus. Por que Ele nos deu um presente com defeito? Onde estaria a magnitude de um Deus que tudo pode? Como Ele permite filhos com necessidades especiais? Por que conosco, pessoas do bem?
O tempo voou. Passaram-se nove anos. Daqui a pouco dezenas de anjos especiais devem invadir a minha casa. Um pequeno batalhão de crianças, a maioria com necessidades especiais, vai brindar a vida entoando o tradicional hino de vitória. Vão cantar cada um ao seu jeito “os parabéns para o Étore em uma data tão querida”. E assim, em meio a balas, doces e embalados por Rebeldes e Calypso, as bandas preferidas do aniversariante, mas antes, sem nos esquecermos das orações, vamos comemorar mais um ano de vida do menino sorriso.
Mais um ciclo vencido, bem vivido. Um ano de grandes realizações. Mais um período de surpreendentes aprendizagens para o aniversariante, para os seus pais e irmãos, para os seus tios e avós, para os seus incontáveis amigos, professores e admiradores. Sim, o Étore tem uma legião de admiradores! Essa criança, apesar de não andar, de não se sentar, de não se alimentar sozinha, de se comunicar apenas pelos olhos e com limitações bem diferentes de outras crianças na sua idade, ganha mais um ano e vai muito bem, obrigado. Sua sede de vida, de alegria, de força de vontade é indescritível!
A medicina, pelo menos na área neurológica, pouco evoluiu nos últimos anos. O Étore, em que pese uma guerra desigual contra a atrofia muscular e outros males, vai cumprindo a sua missão. Diariamente “trabalha” horas a fio com fisioterapeutas, professores e outros profissionais. Segue feliz da vida o seu destino, muito embora, sem explicação, tenha se tornado um sofredor flamenguista em uma casa de absoluta maioria vascaína. Pensando bem, o Étore está quase me convencendo a… deixem pra lá. Recuso-me a admitir a hipótese de uma troca de time. Vascaíno não pode se tornar flamenguista! Ou pode?
Passado todo esse tempo, às vezes são inevitáveis os questionamentos sobre a magnitude de Deus e sobre a dor da alma. As feridas, em razão da natureza humana, ainda existem, não se pode negar. Mas, hoje, compreendemos e, sobretudo, aceitamos por que Deus nos envia os excepcionais. Entendemos que isso é permitido para que nós, os chamados “normais”, possamos enxergar a verdadeira perfeição na alma dessas criaturas e para que possamos ver a excelência nas pessoas que dedicam suas vidas cuidando dos portadores de necessidades especiais.
Hoje podemos encontrar a magnitude de Deus estampada em faces de gente das mais variadas classes sociais. Eu, Lina e o Étore, volta e meia, nos deparamos com a grandeza de Deus em figuras médicas, em enfermeiros, assistentes sociais, zeladores de hospitais, em educadores, nos amigos, em pessoas comuns. Percebemos a grandeza de Deus nos seres de boa vontade, como por exemplo, na minha amiga Ana Moraes que doa, desde os primeiros suspiros do Étore, carinho, amor, solidariedade, amizade e a sua vida a esse anjo tão especial.
A perfeição de Deus pode ser contemplada ainda nas obras assistenciais empreendidas pelo CRER “Henrique Santillo” em Goiânia; pela Rede Sarah de Hospitais de Reabilitação; pela AACD e Hospital “Albert Einstein”, de São Paulo; pelas Apaes em todo o Brasil, pela rede Santa Casa de Misericórdia, pelo CIDFA em Anápolis, dentre outras instituições. O amor de Deus pode ser medido através da força sobrenatural presente nesses meninos e meninas tão especiais, que buscam a felicidade; enxergam a natureza; vêem as cores da vida apesar de suas dores, suas limitações e pelos cruéis preconceitos impostos a eles.
É por essa, e por muitas outras razões, que me permito ser feliz. Sou feliz por que também me sinto especial em ter uma família bonita, saudável e excepcional. Sou feliz, por Deus haver escolhido a mim e à Lina, entre tanta gente mais preparada e com mais recursos intelectuais e econômicos do que nós, para cuidarmos de um anjo em terra. Sou feliz por que em meu lar não há doença, tristeza, tribulações. Ocorrem, é claro, momentos difíceis como em qualquer outra casa. Mas, tudo é efêmero, pois, como bem disse o reverendo Samuel Vieira em uma de suas mensagens dominicais, “não há mal que perdure para sempre”.
Feliz aniversário, Étore. Brindemos, pois há muito o que se comemorar.
Artigo publicado no CONTEXTO em 17 de novembro de 2007, dia do aniversário de 9 anos do Étore Di Clemente e Silva.
Étore, para a alegria dos pais, irmãos, avós, tios e amigos, se ascendeu aos céus na última quarta-feira, 11, aos 11 anos de idade. Velado por centenas de companheiros, estampava nos lábios o sorriso malandro, sapeca, típico dos flamenguistas em dia de vitória. Etin venceu o mundo, agora vive em outra vida.