ACONTECE um dia na vida da gente: pousamos os nossos olhos em um jornal e eis que ali, num espaço singular, nos deparamos com a notícia de que um de nossos entes queridos partiu desta para a melhor…
Ultimamente, inteiramo-nos desse tipo de ocorrido mais através do pequeno e eficiente celular. Na manhã de 21 de novembro, terça-feira, minha querida esposa Célia e eu recebemos, através do celular dela, o triste comunicado do falecimento do Dr. Carlos Salvador Lemos.
MENINICE
Meus pais – Herotides Mendes e Gleuza Silva Mendes -, as duas irmãzinhas – Nélcia e Neusa – deixamos Catalão, Go., desembarcando de um carro de passageiros de primeira classe na Estação Ferroviária de Anápolis, numa gélida madrugada de abril de 1953, tratando de hospedarmo-nos no Hotel Oeste, na movimentada e espaçosa praça de mesmo nome.
Naquele velho e imponente Hotel nós vivemos felizes por alguns meses, deixando-o no tombar do segundo semestre para vivermos numa casa novinha e cheirosa, de propriedade de um conceituado instrutor, então diretor do SENAI, o senhor Mário, imóvel esse localizado na parte central da Rua Visconde de Itaúna.
Com o tempo, eu, menino travesso, de calças curtas e pés bem plantados no chão, com doze anos de idade, conheci o Carlinho, um menininho escurinho, magrinho, dismilinguido e irrequieto que, à época, contava com 8 aninhos…
Gradativamente, aproximamo-nos das almas gentis da numerosa família Salvador Lemos. Suavíssimos eram os laços que prendiam os nossos pais. O pai do Carlos, Pedro Salvador – o seu “Pedruca” -, trabalhava como técnico de caldeiras no antigo frigorífico
da Fabril, sob os cuidados do meu dedicado e saudoso pai Herotides, que inspecionava aquele estabelecimento na qualidade de Veterinário do Ministério da Agricultura, lotado na DIPOA – Divisão de Inspeção de Produtos de Origem Animal. Lembro-me,
perfeitamente, da primeira vez em que mamãe conversou com a esposa dele, a Dona Joana Gomes Salvador. Sempre animada. Uma criatura esguia, de estatura mediana e toda radiante…
Como disse, nos anos que se seguiram, a amizade floresceu entre os nossos: eu gostava de prosear com a Míriam, a Ísis… de ouvir os irmãos mais velhos do Carlos entoando belas melodias do Mário Zan (o Décio e o Pedro Gomes Salvador). Havia o Gilberto (esse, coitado, a maldita COVID ceifou!). Contudo, o apontado como galã, com ar de bom moço e romântico era o Pedro, todo falante e tocador de violão. Muito culto, graduou-se em Direito e foi trabalhar em Brasília, aposentando-se como Assessor
Parlamentar no Congresso Nacional.
JUVENTUDE
Carlos, eu e outras criaturas da região – ruas Mauá, Visconde de Itaúna, Guimarães Natal e Praça Oeste – divertíamo-nos bastante. Ao cair da noite, a gente sintonizava o aparelho de rádio da sala da casa dele ou da nossa e, atentamente, acompanhávamos
pelas ondas sonoras da Rádio Nacional do Rio de Janeiro as “Sensacionais Aventuras do Anjo” e, em seguida vinha a novela “Jerônimo, o Heroi do Sertão”; quando dezembro chegava, tomávamos o trem até Leopoldo de Bulhões e, lá no cerrado daquele
município ignoto a gente ia, de moita em moita, catando as deliciosas gabirobas. Exaustos, mas eufóricos, no colo da noite regressávamos à Ànápolis, no trem. Comparecíamos às matinês dominicais no Cine Imperial, para as trocas de gibis e
assistíamos àqueles magníficos filmes de cowboys com o Durango Kid, o Rock Lane, o Roy Rogers – King of the Cowboys -e depois vieram as fitas com o Elvis Presley, “King Creole”; passamos a curtir a Cely Campello, a Brenda Lee, o Pat Boone, a
Virginia Mayo, o Carlos Galhardo, o Francisco Alves, o Nat King Cole… Que lindos e sonoros tempos!!!
CASAS PERNAMBUCANAS
Carlos e eu fomos submetidos a testes nas Casas Pernambucanas, uma bonita loja instalada na Rua Barão do Rio Branco: era faxina, fazer pacotes e entregas. Fomos aprovados e até elogiados! Mais uma vez, o destino colocava a gente lado a lado. Rssssssss! Os vendedores eram incríveis: o Izamôr (sistemático!), o Nivaldo (baiano arrumadinho), o seu Pinheiro (nordestino), o Rivaldo Rodrigues, o Joãozinho Rodovalho, toda essa “plêiade” gerenciada pelo meu padrinho de batismo, Sebastião “Bambinha”.
Carlos principiou a trabalhar em uma grande casa de ferragens, denominada Casa do Barata, ali na Rua 15 de Dezembro. Naquela ocasião, conheceu a Iracema, iniciando-seentão as “aventuras” no sentido de conquistar aquela linda e polida virgem dos lábios de mel, com a qual viria a casar-se na suave noite de 02 de março de 1988, na Igreja de São Francisco de Assis, em Anápolis.
OS ESTUDOS
O serviço de Deus tem várias formas. E o Carlos, já moço, deixando os toscos bancos do Colégio Estadual “José Ludovico de Almeida”, sagrou-se vitorioso ao graduar-se em Medicina, especializando-se com esmero em Ortopedia, pela UFG, em 1978.
E foi assim que ele passou a servir ao Senhor, atuando como médico profissional no HEG, Hospital Municipal, Santa Casa de Misericórdia e outras unidades de saúde local. Porém, é importante ressaltar que ele nunca deixou de jogar futebol, com o Professor
Zezinho Lôbo, o Ailton Tucun, o dentista Israel e outros, tampouco relegou ao ostracismo o hábito de soltar a voz, de cantar em público, inclusive no Restaurante Panela Velha….Como ele gostava de cantar as composições do Elvis Presley, as canções italianas!…
Graças aos meus costumeiros contatos com o Adido Cultural da Embaixada da DDR Deutsche Demokratische Republik (República Democrática Alemã), na década de 1980, conseguimos para o Carlos um Curso de Especialização na área de Ortopedia, naquele cinzento e fechado país do Leste europeu. Mas não deu certo! Por um motivo nitidamente sentimental: o Carlos foi e voltou de lá voando! Ele amava tanto Anápolis, a sua família e os seus amigos, que fez questão de perder a bolsa de estudos! Não
suportou ficar naquele fim de mundo! Sentiu saudades dos médicos Marcos Paiva, Diebe Afiune e Marcio Paiva ; do William Leyser O’Dwyer e sua Anne Lotte, do Dr. Antônio Antenor Rodovalho, do Eduardo Moneró, dos poetas Paulo Nunes Batista, do
Dr. Henrique Antônio Santillo,da Vanda Alves. dos velhos comunistas Alexandre Almeida e a querida Cordolina, do Clóvis Bueno, seus filhos Lenine Bueno Monteiro e Beloyanes; e dos seus colegas médicos Adão, Severino, Wilton Jury, Naim, Jesulino, Oswaldo Abrahaam e Fernandinho de Faria; sentiu saudades demais do José Teixeira, do José Olímpio, do Asôr José Teles, do Alfredão, do Tonhão, do Omarzito; do intelectual Antônio Carlos Paulino de Queiroz, enfim, de gente simples, das boas conversas, dos risos, do bom vinho, das serestas com os amigos Pastinha, Rubinho, Ronan César, o Leandro da Geny (nora da Haydèe Jayme), do Divino Rodovalho, da Dona Adelaide e do filho cantor Elvisley Lemes, dos doces momentos nos barzinhos
com o Humberto, Joãozinho e o mais velho deles, o André Luiz Campos; das longas conversas com o laboratorista Roberto Salomão, dos professores Xico e Danúbio, do Dr. Oswaldo Caetano de Abreu, do João Alves, do prof. Ernest Heeger e de sua esposa,
Leny Heeger; do Carlos rasgando a sua voz no Madrigal Bel Canto, ao lado da Volga Lena naquela tristonha canção “Luar do Sertão”, do Catulo da Paixão Cearense e por aí…
PROFESSOR WANDERLEY RODRIGUES CUNHA E IVO MENDES
Pra comentar sobre as nossas interessantes aventuras com o Professor Wanderley Cunha e seu leal amigo Ivo Mendes, com toda a certeza eu necessito de uma resma de papel: as aulas de Inglês no FISK, as músicas que ele ensinava pra gente. Como esquecer???
O TEATRO
O tablado foi outra atividade marcante na existência do Carlos!… Atuamos em numerosos espetáculos teatrais, dentre os quais “A Viúva do Tibúrcio”, em 3 atos de Adail Viana, comigo, com a linda Renner Santos Almeida, a morena Leny Bueno Monteiro (que acabou mudando-se para a URSS e lá graduando-se pela Universidade da Amizade dos Povos “Patrice Lumumba”, em Moscou; seus colegas de Arte Dramática, o cômico Harley Tennessee de Busby e o romântico Jomar Silveira Piantino, a sua marcante atuação como ator em “Deus não dá Filhos, o diabo dá sobrinhos”, com a Maria José Batista, a Margareth Mota e o Rubens Grein, pela equipe cênica do GREAT, do Colégio Einstein, patrocinado pelo nosso generoso Prof. de Matemática Lucas Gonçalves. Teve o caso de “Um Defunto Atrás do Sofá”, da SATAN. Pois é! O Carlos mostrava-se sempre radiante e impagável, arrancando risos e mais risos das
pessoas com as bundas nas duras cadeiras…
REGISTROS
O nosso leal amigo Carlos nasceu em 16 de março de 1946. Casou-se em 2 de março de 1988 na Igreja de São Francisco, Anápolis.
Sua dileta esposa, Iracema Marquezam Salvador Lemos, é natural de Araguari-MG (03.05.1951). Seus pais (já falecidos): Fioravante Marquezam e Inês Montavani Marquezam.
Iracema conta com os seguintes irmãos: Walter, Daurival Marquezam e José Carlos Marquezam. Itamar Marquezam faleceu. Ela conta com as irmãs: Jandira Marquezam Rezende, Maria Inês Marquezam Brito, Neide Marquezam Nunes, Helena Marquezam
e Neusa Marques Nascimento.Sao seus filhos Shephane Victorino Borges (vive nos EUA)e o caçula Erick Marquezam Lemos .
O MELANCÓLICO FIM
O velório na Pax Primavera… Que manhã tristonha!… Os familiares, os amigos… a Iracema, os seus olhos empanados por tênue lágrima, caindo sobre o corpo inerte do companheiro… Doía ver tanta gente em tão extremo sofrimento…
Ao longo de sua movimentada e alegre vida, o cidadão Carlos Salvador Lemos, solitariamente atuou como médico, minorando os sofrimentos e salvando preciosas vidas.
Acompanhando uma seleção de jogadores, como médico, nas Bahamas, ele avistou uma criança em profundo desespero. Ela estava afogando-se no mar que bramia furiosamente e, no entanto, ele pulou naquelas águas salgadas e delas trouxe para a praia ensolarada aquela débil criatura. Como uma ave de rapina, a notícia logo alcançou vôo e acabou saindo nos jornais da localidade.
Contudo, recentemente, no leito de dois hospitais, mesmo contando com competentes médicos, os mesmos não puderam embalá-lo na maviosa canção de sua própria salvação. Não puderam livrá-lo do óbice da morte!