Estratégia foi usada por vereador para tentar evidenciar a falta de democracia que imperava na cidade
Corria o ano de 1983 e a tensão política em Anápolis atingia um dos seus ápices, fruto da aberração que era a eleição naquela época: vereadores podiam ser eleitos pelo voto direto, mas o prefeito era nomeado pelo general-presidente do momento, com uma canetada em Brasília.
A cidade havia perdido o direto de escolher o chefe do Executivo havia dez anos, portanto usava as prerrogativas que lhe restavam para demonstrar a insatisfação com a Ditadura Militar.
O PMDB, partido que fazia oposição ao regime, foi amplamente preferido nas urnas naquele ano de 1982. Iris Rezende foi eleito governador, com 72,72% dos votos dos anapolinos. Mauro Borges garantiu uma cadeira de senador e dois representantes de Anápolis, ambos peemedebistas, se elegeram para deputado federal: Fernando Cunha e Adhemar Santillo – esse último com 50,2% da preferência dos anapolinos.
Para a Assembleia Legislativa de Goiás, o PMDB de Anápolis garantiu três eleitos: Romualdo Santillo, Milton Alves e Ronaldo Jayme. Na Câmara Municipal, a força da oposição ao Regime Militar foi ainda mais avassaladora: 13 das 17 cadeiras foram ocupadas por peemedebistas.
Somava-se a esse grupo de eleitos – bastante combativo pela volta da democracia – o então senador Henrique Santillo, que desde 1979 batalhava, no Congresso Nacional, para que Anápolis deixasse a famigerada condição de Área de Segurança Nacional.
Confrontos
Era de se imaginar que a vida do prefeito nomeado da época, Olímpio Ferreira Sobrinho, não fosse nada fácil. Professores fizeram uma greve. Vereadores da oposição ameaçaram cassar seu mandato, o que gerou uma situação curiosa: o procurador-geral do Município foi a público dizer da impossibilidade de a Câmara Municipal destituir do cargo alguém que não tinha sido escolhido pelo voto. Cabia apenas ao general-presidente da República fazê-lo.
Mas como a ideia era bater de frente dia e noite nos militares e seus nomeados, eis que o vice-presidente da Câmara Municipal da época, Valdir de Moura, em agosto de 1983, apresentou um projeto de lei propondo a alteração da bandeira oficial de Anápolis. Esse foi o caminho encontrado para denunciar as urnas caladas na cidade desde 1973. Analisada quase 52 anos depois, a propositura de Valdir é um primor de combatividade e ironia.
No projeto de lei, Valdir descreve que a nova bandeira anapolina deveria ter fundo azul, com o desenho de uma urna branca no centro, com uma cédula eleitoral amarela sendo introduzida em sua boca. A mão que introduz essa cédula deveria estar acorrentada e, abaixo do desenho, constaria a seguinte mensagem: “Liberdade e Autonomia”.
Valdir escreve no projeto que essa nova bandeira deveria ser hasteada na Praça do Ancião, Praça 31 de Julho, Gabinete do Prefeito, Gabinete do Presidente da Câmara Municipal, todas repartições públicas e escolas. O detalhe: ela deveria permanecer a meio pau. O vereador não colocou no projeto, mas a ideia era demonstrar luto pela falta de democracia. E mais: a mesma bandeira deveria ser o logotipo dos papeis oficiais dali em diante.
No rodapé do projeto, em letras maiúsculas, constava a seguinte mensagem: “Nenhum fato político é mais importante do que eleições”. Era preciso aproveitar cada centímetro para denunciar a situação de Anápolis.
Esse projeto da nova bandeira acabou passando apertado na Comissão de Constituição, Justiça e Redação, cujo relator com parecer favorável foi José Escobar. Seis outros vereadores deram sinal positivo para a nova bandeira na CCJ: Newton de Faria, José Vieira, Valdivino Pereira, Antônio de Deus, José Gonçalves e o próprio Valdir Moura. Seis foram contrários.
Alma em pranto
O projeto acabou aprovado em plenário e, claro, virou notícia na cidade. Em entrevista ao Correio do Planalto, o prefeito Olímpio disse que a troca da bandeira era uma aberração. “Eu vejo isso como uma estranheza profunda, com a alma em pranto e com o espírito banhado em lágrimas, além da vergonha que se estampa em meu semblante”, disse o prefeito. Olímpio afirmou ainda que esperava que a coisa toda estivesse sendo feita “em tom de brincadeira, em tom de blague”.
O prefeito ainda tocou no fato de Valdir de Moura não ser nascido em Anápolis. “Quem está propondo a troca das bandeiras é um forasteiro, é um estranho a esta terra e aos nossos interesses”, afirmou o Olímpio, que faleceu em 22 de agosto de 2016.
No mesmo jornal, Valdir dá sua versão. “O projeto visa, na verdade, oficializar e divulgar o momento histórico vivido pela comunidade anapolina, pois traduz o anseio geral, único e de direito de todos, que é a devolução da autonomia política de Anápolis”, comentou o vereador, reafirmando a luta pela eleição direta.
Valdir rebate a acusação de forasteiro. “As reações de pessoas ligadas ao prefeito, tentando denegrir [sic] a minha condição de anapolino, refletem o pensamento ditatorial e discricionário do regime que ele representa e que levou o país ao caos. Nenhum cidadão brasileiro pode ser considerado forasteiro dentro da sua própria pátria”, disse.
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