Sobre a irracionalidade

Não sei quantas vezes mais invocarei Saramago, na vã tentativa de dar lustro aos meus escritos, verniz à minha dialética, erudição aos meus pensamentos. Nestes tempos, sombrios, tempos em que a razão e a falta desta coabitam o mesmo espaço, nada mais lírico que buscar inspiração em mestres da prosódia. Saramago em ´A Racionalidade Irracional´, diz que devemos criticar o comportamento do ser humano que, embora dotado de razão e organização, facilmente se corrompe, se torna maligno, deixa de ter razão.
As redes sociais no Brasil, talvez no mundo todo, passaram a ser ponto e contraponto da razão e da falta desta, da serenidade e da verborragia, da verdade e da falácia, conforme os ventos soprem do Norte ou do Sul, da direita ou da esquerda. Vejamos alguns exemplos: Trump, presidente eleito dos EEUU, ao reunir-se com o Primeiro Ministro de Israel, Benjamin Netaniahu, propôs uma solução unilateral para o conflito entre árabes e judeus, sendo massacrado pelos árabes; semanas após reuniu-se com o Presidente da Autoridade Nacional Palestina, Mahmoud Abbas, atraindo a ira de judeus. O midiático Ministro do STF, Gilmar Mendes, era odiado pela esquerda brasileira e incensado pela direita quando assumia posições contrarias a Dilma, Lula e ao PT. Nesta semana, ao dar o voto decisivo que concedeu habeas corpus a José Dirceu, passou a alimentar a ira da direita e o regozijo da esquerda.
Mais uma vez, vejamos o que diz Saramago: ´Falamos muito ao longo destes últimos anos (e felizmente continuamos a falar) dos direitos humanos; simplesmente deixamos de falar de uma coisa muito simples, que são os deveres humanos, que são sempre deveres em relação aos outros, sobretudo. E é essa indiferença em relação ao outro, essa espécie de desprezo do outro, que eu me pergunto se tem algum sentido numa situação ou no quadro de existência de uma espécie que se diz racional´.
Ao perdermos a capacidade de sermos imparciais, perdemos a razão, deixamos prosperar a irracionalidade. O ambiente que se criou nas redes sociais é o ambiente do pugilato de idéias que em nada ajuda na construção de um ambiente mais fértil.
Clovis Rossi, ele mesmo, antes amado pela esquerda, hoje incensado pela direita, em artigo publicado na Folha cita o conceito de ´ superioridade moral´, no qual alguém que se julga essencialmente melhor não aceita as contra-razões daqueles que pensam diferente e, pior, não acredita que deva explicações aos que não julga a sua altura.
Fica, pois a certeza tão propagada por uns e não admitida por outros que o homem é sim um animal irracional, exatamente como qualquer outro animal com uma única diferença, um animal irracional complexo, e ,isto , não necessariamente é justificativa para cometer o desvario de desprezar a razão.