Todos nós temos uma “obsessão das origens” (Marc Bloch), que é a compulsão em saber de onde e quando surgiram as ideias, as palavras, os mitos etc., como se ao saber isso pudéssemos desvendar os mistérios que os cerca. É o “mito das origens”. Toda a civilização espera muito da própria memória e é certo que a história explica quase tudo. Mas, explicar o mais próximo pelo mais distante, nem sempre esclarece as dúvidas, às vezes embaralham-se os pensamentos, e adia-se a compreensão. Para o bem da cultura geral, anota-se o que segue abaixo.
Os termos ‘esquerda’ e ‘direita’ surgiram, no sentido político, durante a Revolução francesa no século XVIII. Os deputados que faziam parte da Convenção Nacional, que antes já fora Assembleia Nacional Constituinte, tomaram seus assentos, uns do lado direito do Presidente daquela casa, e outros, do lado esquerdo. Derrubados o Rei Luiz XVI e sua corte, uma camada diversa de pessoas e de projetos se instalam no comando do país. A Bastilha, uma fortaleza prisão onde eram encarcerados os inimigos da realeza, foi invadida e destruída. Uma milícia comandada pela classe burguesa (banqueiros, comerciantes, funcionários públicos, profissionais liberais e pequenos comerciantes), chamada de Guarda Nacional, liderou a população civil e resistiu ao rei. No campo castelos foram queimados e terras invadidas. Os privilégios feudais foram abolidos. No interior da Assembleia Nacional (Convenção Nacional), uma luta se instalou: sentados à direita do presidente da Assembleia, os deputados que desejavam garantir as conquistas da burguesia e estancar a Revolução evitando as radicalizações, se opõem àqueles deputados que se assentaram à esquerda e que, defendendo uma posição sociopolítica progressista, queriam o aprofundamento da Revolução. Esses últimos são membros do partido jacobino, da pequena burguesia (pequenos comerciantes), e são defensores das camadas populares de artesãos, operários e camponeses. Se preferir podemos dizer que os da direita eram os conservadores e os da esquerda os progressistas. Essa última observação nos importa pois aponta para o uso desses termos hoje…, pero no mucho.
Nota-se que aquelas duas facções políticas, direita e esquerda, combateram o rei e a nobreza, (pessoas que viviam de privilégios judiciários e fiscais), a aristocracia das classes superiores e parasitárias daquela sociedade (clero e nobres) e os direitos feudais. Só por isso já teríamos inviabilizados ipso facto o uso correspondente dos termos pois não temos uma forma de governo monárquico, não temos um rei nem uma nobreza, e o feudalismo já há muito foi substituído pelo capitalismo, e, apesar das deficiências, vivemos num regime democrático com sufrágio universal, divisão de poderes e imperativo de uma constituição.
Para muitos teóricos enquadra-se no campo da direita uma diversidade extensa de grupos que vai de teocratas islâmicos, de nazistas e fascistas até neoliberais, incluindo nacionalistas e neocapitalistas. Isso não esclarece muito, e até embaralha os termos ‘esquerda’ e ‘direita’, mas nos dão pistas do porquê políticos de direita são classificados (acusados) de nazistas e fascistas, quando, às vezes nem são isso, mas se assumem como neoliberais que acreditam num Estado que interfira o mínimo na economia, ou, conservadores no campo da moral. Da mesma forma pessoas com posições políticas de esquerda são “acusados” de comunistas (no Brasil são chamados também de petistas em função da hegemonia desse partido na política nacional dos últimos anos), de socialistas, anarquistas, ambientalistas etc., quando, muitas vezes, temos pessoas que são mesmo é humanistas seculares que buscam uma sociedade tolerante e igualitária, ou, defende uma pauta política que inclua os direitos das minorias e dos desprivilegiados social e economicamente.
O uso de direita e esquerda coagulou-se, ao longo do século XX, em torno de uma alternativa entre dois tipos de regime político, a direita democrata e liberal, e a esquerda marxista (comunista ou socialista). Após a queda do muro de Berlin em 1989, o marxismo, aquele agonizante, foi enterrado. A experiência comunista, da URSS, à China, passando por Cuba e boa parte do leste Europeu sofreu um grave revés. E o que sobrou da esquerda? Se o termo pode ser usado de alguma forma coerente seria para designar uma política de segurança social, uma distribuição de renda mais justa, e um Estado providência robusto para contrabalancear as possíveis incongruências do capitalismo.
Esses ideais políticos de uma sociedade mais equilibrada e solidária com os mais vulneráveis são louváveis e necessários. Devemos porém superar esse ranço político de um sonho (pesadelos pra quem o viveu) que não deu certo. Não há antinomia, dentro de um regime democrata, liberal e capitalista, entre a direita e a esquerda. Não se trata de uma alternativa, mas de uma divisão do trabalho político. Segundo o próprio Marx, o sistema capitalista é o melhor sistema para produzir riqueza. É essa sua tarefa, nada mais, nada menos, e ele a desempenha como ninguém. O capitalismo, por si só, é indiferente à maneira como a riqueza que ele produz será repartida. E se preferência tivesse seria por uma sociedade sem miséria, bem instruída, sem violência, com distribuição de renda justa: terreno propício para mais progresso econômico e mais avanços sociais.
A política moderna, já vista por Victor Hugo nos Miseráveis, tem dois problemas distintos: 1) a produção da riqueza, 2) a distribuição da riqueza. Os países com uma tradição de esquerda mais acentuada, como a França, é excelente na divisão, e mais fraca na produção. Os países de direita mais robusta, como o Reino Unido, produz muito mas divide mal. Os países nórdicos (Suécia, Finlândia, Dinamarca, Noruega – e notemos que são os mais “civilizados” e bem sucedidos do planeta) compreenderam desde os anos 1940 que não há contradição nenhuma entre ser, ao mesmo tempo, de direita na economia e de esquerda em política (social). Esse divórcio doutrinal e ideológico entre economia e política deve urgentemente ser superado. Insistir nesse binômio alternativo resulta ou numa África do Sul, campeã em concentração de riqueza, ou numa Cuba, onde divide-se o quase-nada que o país produz. Deve-se fazer os dois, primeiro criar a riqueza (o capitalismo tirou a Europa da pobreza), e em seguida, de cara e consciência limpas, dividir a riqueza com justiça e com solidariedade. O Ministro brasileiro das finanças das décadas de 1970/80, Delfim Neto, dizia que “a riqueza tem que crescer para depois dividir” (sabia da lição), mas, conquanto o “bolo da riqueza” tenha crescido, a divisão foi para as calendas gregas.
Como já dizia Aristóteles: para ser generoso, tem que ser rico, nós acrescentamos: e para ser verdadeiramente rico há que ser generoso!