“Nunca se esquecer, para que nunca mais aconteça”. A frase cunha o objetivo da Caravana da Anistia, que percorre o País com uma missão: fazer o reconhecimento público do Estado Brasileiro, inclusive, com pedido de perdão, às vítimas do período da ditadura militar, que perdurou de 1964 (deposição de João Goulart e posse do General Castello Branco) a 1985 (eleição de Tancredo Neves pelo Colégio Eleitoral). Neste período, foram feitas vítimas, milhares de brasileiros que se insurgiam contra o regime, além de um verdadeiro exército de presos políticos e exilados. A maioria deles passou por momentos de agonia num dos mais controversos períodos da história recente do Brasil.
A Caravana passou por Anápolis na terça-feira, 27, trazendo recordações e sentimentos de vitória por aqueles que, depois de muitos anos, obtiveram o perdão público do Estado e reparações pecuniárias. Nem todos puderam estar presentes para vivenciarem o momento histórico e recobrar um pouco da dívida com o passado. Foi caso do ex-vereador; ex-prefeito; ex-deputado estadual; ex-senador, ex-governador e ex-ministro da Saúde, Henrique Santillo.
O processo 64.201 relatado pelo conselheiro, advogado Egmar José de Oliveira (que foi vereador em Anápolis e é o único goiano na Comissão de Anistia), foi protocolado pela viúva de Henrique Santillo, Sônia Célia Santillo que, também, não pôde comparecer à audiência por motivos de saúde. Coube a Adhemar Santillo, irmão de Henrique, representar a família. Em sua fala, ele traçou uma rápida trajetória do anistiando, que fora, segundo relatou, um aluno brilhante que se apaixonou pela política no movimento estudantil. A família, oriunda de Ribeirão Preto-SP, veio para Anápolis no ano de 1944. Henrique deixou a cidade para estudar medicina da Universidade Federal de Minas Gerais e retornou após a formatura para trabalhar. Ganhou conceito pelo seu perfil humanista.
O sucesso na carreira e a paixão pela política, o conduziram à Câmara de Vereadores de Anápolis, em 1965, com 1.536 votos – a maior votação proporcional já registrada para o cargo. Porém, a opção partidária pelo antigo MDB chamou a atenção e, no dia da diplomação, o juiz eleitoral local não concedeu o diploma, que veio após recurso junto do Tribunal Regional Eleitoral. Adhemar Santillo narra que, na época, seu irmão conseguiu anexar uma declaração de um órgão do Exército, atestando que ele, Henrique, não estava “fichado” como comunista. Em meio à confusão, o Tribunal recebeu um telex do então governador de Minas Gerais, para que se desconsiderasse a declaração. No entanto, o TRE resolveu manter a decisão e conceder a diplomação.
Descredenciamento
As perseguições não pararam por aí. Henrique Santillo foi descredenciado como médico do antigo INPS (Instituto Nacional de Previdência Social), sob a alegação de tratar-se de um “elemento perigoso”. As dificuldades não abalaram Henrique Santillo que seguiu suja trajetória profissional e política, elegendo-se prefeito (1969-1972), deputado estadual (1975-1979), senador (1979-1987) e governador (1987-1991). De 1993 a 1995, exerceu o cargo de Ministro da Saúde, no governo de Itamar Franco. Após deixar o ministério, Dr. Henrique Santillo, o “elemento perigoso”, foi prestar atendimento ambulatorial em um pequeno Posto de Saúde da Família (programa que ele mesmo criou quando ministro), na região Norte de Anápolis. Foi presidente do Tribunal de Contas do Estado, em 2002, ano de seu falecimento, no dia 25 de junho.
A família Santillo recebeu o perdão público do Estado. À viúva, foi concedida uma pensão pecuniária mensal, de R$ 3,2 mil retroativa a 1994, somando R$ 244 mil. “Se há uma voz que foi autêntica na defesa da democracia, na defesa do povo e contra o regime antidemocrático, essa voz foi a de Henrique Santillo”, proclamou Adhemar. A reparação, embora tardia, foi justa ao político de maior projeção de Anápolis.
Goiás: trincheira da luta democrática
O relato de Íris Rezende Machado, ex-governador; ex-senador; ex-ministro da Agricultura e da Justiça, ex-prefeito de Goiânia e, atualmente, licenciado do cargo para disputar, novamente, o Governo de Goiás, foi carregado de emoção e uma verdadeira aula de história e civismo.
No auge da carreira como prefeito de Goiânia e com fama no País pelos grandes mutirões para a construção de moradias destinadas às famílias de baixa renda, Íris Rezende, foi cassado em 17 de outubro de 1969, quando estava bem posicionado para disputar o Governo de Goiás.
No depoimento, ele contou algumas passagens de bastidores. Numa delas, a abordagem feita por um general do Exército que, sutilmente, lhe informou que não era aceitável um comunista no governo e estava, por isso, retirando do cargo o então governador Mauro Borges e pedia que, como deputado, Íris colaborasse com os seus pares na Assembleia legislativa. “Eu disse que não tinha condição de atender ao pedido, por que me elegera pelo PTB, partido de Mauro Borges”, disse. O general, então, solicitou que Íris, então Presidente da Assembleia Legislativa de Goiás, convocasse os demais deputados para uma conversa reservada, pedido este que, também, negou-se a atender. Da mesma forma, se insurgiu contra a prisão do líder camponês e deputado José Porfírio, dentro do recinto do Parlamento Goiano.
Com a deposição de Mauro Borges, a Assembleia elegeu, indiretamente, Ribas Júnior, oficial do Exército, para um governo transitório. Quando chegou o período da eleição, Íris já era uma liderança reconhecida e a sua vitória era iminente. “Fui surpreendido com a cassação do mandato de prefeito e a suspensão dos direitos políticos”, sublinhou, acrescentando que chegou a ser convidado a ingressar na Arena (partido que apoiava o regime militar), mas foi para o MDB (oposição ao regime), partido que ajudou a fundar.
Diretas Já
Íris Rezende ressaltou que Goiás foi um dos estados brasileiros mais prejudicados pelo regime da ditadura, com várias lideranças na lista dos perseguidos: ele próprio, Mauro Borges; Pedro Ludovico; o então senador por Goiás Juscelino Kubitscheck, Honestino Guimarães e muitos outros. Em contraponto, transformou-se numa das principais fronteiras de defesa do Estado Democrático de Direito. “Foi em Goiás, a primeira mobilização pelo movimento que ficou conhecido como ‘Diretas-Já‘, com mais de 500 mil pessoas lotando a Praça Cívica e ruas adjacentes. Naquele momento, trincava-se a muralha da ditadura no país e tive o privilégio de coordenar a manifestação”, lembrou, com a voz embargada pela emoção.
O processo de Iris, sob o número 61.154, foi o primeiro julgado pela Comissão da Anistia, na caravana que passou por Anápolis. Também relatado pelo conselheiro Egmar José de Oliveira, culminou com o a declaração de anistia, o pedido de perdão e uma reparação indenizatória de R$ 100 mil que, a pedido do próprio Iris, deverá ser doada em partes iguais a três instituições da cidade: a Santa Casa de Misericórdia, o Hospital Espírita Psiquiátrico e o Instituto Cristão Evangélico.
Comunistas, sim, com orgulho
A Caravana da Anistia em Anápolis, rendeu homenagem a algumas personagens da história política que, também, sofreram com o regime de exceção. Com mais de 90 anos de idade e em uma cadeira de rodas, Clóvis Bueno, passou emoção ao público, dizendo: “Essa é uma vitória de todos nós”. O ex-deputado Haroldo Duarte, destacou que a Caravana faz justiça ao Brasil.
A advogada Maristela Duarte Mendes, esposa de Cláudio Mendes (já falecido), ambos também homenageados, disse em alto e bom tom que, graças ao marido, “me tornei subversiva”. Se fosse no tempo da ditadura, uma declaração como esta, em público, seria o passaporte para os porões da repressão. Ao CONTEXTO, ela lembrou que a sua luta “comunista”, foi também uma luta de superação como mulher para vencer os preconceitos da época e estimular outras mulheres a ingressarem na vida política. Outro homenageado foi o ex-vereador Geraldo Tibúrcio, que foi encarcerado no famoso e hoje extinto presídio do Carandiru, em São Paulo e que já havia sido anistiado.
O presidente da Comissão de Anistia do Ministério da Justiça, Paulo Abrão, ressaltou que o trabalho de resgate da memória, a preservação da verdade e a busca das documentações que, até então, não foram disponibilizadas para a sociedade, são meios para que se possa reafirmar a democracia do País, “reconhecendo a importância dos que lutaram para que tivéssemos as liberdades que temos hoje e apontássemos para o futuro, a fim de não repetirmos mais os erros do passado”.
Perdão
Ainda, segundo Paulo Abrão, esse perdão oficial é um “momento de reconciliação do Estado, se redimindo com aqueles que, no passado, foram estigmatizados, chamados de subversivos, terroristas, inimigos da pátria, mas que, em verdade, eram pessoas que estavam resistindo contra um regime autoritário e não tinham a mesma oportunidade de expressarem as suas opiniões, tal como os ditadores da época realizavam”.
Desde a sua criação, em 2001, a Comissão de Anistia já apreciou mais de 64 mil processos. Em Anápolis, a Caravana do Ministério da Justiça analisou 69 requerimentos. Além dos nomes conhecidos pela mídia, constam da relação lideranças comunitárias, profissionais liberais, operários, professores e outros. A Comissão já está elaborando um acervo histórico dos períodos de repressão política no País. O Memorial pretende organizar, preservar e divulgar a memória dos “anos de chumbo” no Brasil.
Até o final do mês, ela estará aberta ao público na Faculdade de Direito de Anápolis, onde foram realizados os trabalhos da Caravana, a exposição fotográfica “A Ditadura do Brasil – 1964-1985 – Direito à Memória e à Verdade”, produzida pela Secretaria de Direitos Humanos.